Mauro Stiegler: UMA AGULHA NO PALHEIRO

DIMENSÕES DO CONTEMPORÂNEO SÃO BENTO DO SUL

ESTE MINICONTO FAZ PARTE DO MEU LIVRO “CONTOS DE ALMA E CORPO”, QUE SERÁ LANÇADO NO PRÓXIMO INVERNO; COMPARTILHANDO EM PRIMEIRA MÃO COM O “JORNAL EDIÇÃO DIGITAL” E SEUS LEITORES

Por Mauro Cesar Telesphoros Stiegler, psicólogo clínico

No Café com Letras , tradicional e bem frequentado, na rua central da pequena Moscovina, cidade do sul do País, Talita entra só, buscando com seus olhos uma mesa vaga; esforça-se para olhar com tranquilidade e segurança em meio ao burburinho dos presentes; a roupa foge aos padrões: saia até os joelhos com estampas de girassóis; blusinha de lã fina e cor neutra; brincos discretos e pouca maquiagem; nos pés, sapatilhas simples mas elegantes, Talita trazia na intimidade a esperança de despertar interesse em alguém que visse o mundo com lentes parecidas com as dela.

Era fim de outono e ela arriscou sair assim, vestida mais leve, sabendo que talvez tirintasse na presença do público do café.

Talita era amante de literatura europeia; imaginava por instantes estar entrando em um café parisiense ou londrino, já que naquela tarde chovia na pequena Moscovina; chovia e as ruas estavam tomadas por neblina densa, fazendo com que as luzes públicas já estivessem acesas antes mesmo das 17 horas.

Euforia

Aquilo, sim, trazia uma alegria silenciosa que dava sentido; não havia explicação; e isso mais ainda causava uma espécie de euforia invisível e discreta que quase ninguém percebia, a não ser quem dispusesse do bom gosto e da sensibilidade aproximada da dela…

Como todo ser humano valoroso, a delicada Talita tinha lá seus conflitos: mesmo que sentisse prazer em frequentar um café em fins de tarde de inverno, acabava às vezes sentindo culpa.

Leitora que era de Anna Harentd e Anne Frank, sentia peso e angústia quando pensava que num frio mais intenso, muito mais intenso que aquele, homens, mulheres, jovens, crianças e velhos, descalços, emagrecidos, doentes e infinitamente famintos, vestindo seus tristes pijamas listrados, eram assassinados e torturados nos campos de concentração do horror nazista apenas algumas décadas atrás.

Diálogos internos

“Tempo e lonjura são insignificantes para almas seriamente humanas”, dizia Talita em silêncio nos seus diálogos internos, que eram ditos e sentidos de alma e corpo. “E em matéria de desmandos, horrores e tudo o que se relacionar à crueldade humana, que parece não ter medidas, sinto-me na obrigação de manter fatos assim vivos em minha memória e em meus valores, que são tão contrários a totalitarismos, sejam lá da ideologia que forem”, arrematava ela, numa espécie já de aforismo de si para consigo mesma naquela terra algo desolada de empatia e compaixão.

Lutar para não ser vilipendiada por uma possível desolação íntima constituía uma das metas cotidianas de Talita; tinha resiliência frente aquele terreno inóspito regado de indiferença e preconceitos de toda ordem. Aliás, ordem e ordens, não eram práticas bem aceitas por ela. Delicada e elegante, mas febril na defesa dos seus valores.

Por isso, talvez uma certa vida solitária, ou pelo menos de poucos amigos. As suas trincheiras eram seus livros, cinema e esporádicos encontros em cafés ou em pubs na companhia de quem tivesse um mínimo de afinidade.

Cenário perfeito

O cenário era perfeito para mudar o cotidiano enfadonho de Talita naquela tarde de chuva fina e neblina. Se encontrasse alguém talvez não só sua tarde mudaria, mas quem sabe a vida, a sua história… Mas chovia, e com isso Talita entrou carregando sua sombrinha aos pingos; os ombros e partes do cabelo também tinham pingos de chuva.

Talita fugia mesmo aos padrões: ela não tinha carro; andava à pé ou de ônibus. Naquela cidade de valores econômicos supervalorizados, tinha pouco espaço para a beleza ímpar e ampla de Talita. Ela percebeu a dificuldade quando os olhos da clientela burguesa lhe examinavam de cima embaixo.

Mas Talita não se deteve: ela escreveria mais um capítulo da vida que elegeu para ela com classe e fineza. Encontra a sua mesa; coloca elegantemente no seu lado o livro “A Peste”, de Camus, que trazia nas mãos; encosta a sombrinha na parede onde a sua mesa esta posta e aguarda.

Pingo frio

– Pra você?

– Um café vienna e um quiche de alho-poró, por favor;

– Pois não, só um instante.

Se decidiu mais uma vez resistir e fugir aos padrões; sentiu um pingo frio cair no ombro e lembrou que seus cabelos estavam molhados da chuva. Mas não importava. Pelo contrário: percebeu que seus padrões eram sofisticados demais para aquela contemporaneidade de medidas efêmeras e toscas.

Já era quase noite quando depois de segurar por alguns minutos com as duas mãos a xícara do seu café, Talita se dirige ao caixa; paga em dinheiro vivo e sai serena, num misto de esperança e leve angústia, decidida a continuar fugindo aos padrões.

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