PASSAMOS A SER CONSUMIDORES DE ANGÚSTIAS
Por Mauro Cesar Telesphoros Stiegler, psicólogo clínico
“O homem só pode agir se compreender que conta exclusivamente consigo mesmo, que está sozinho e abandonado no mundo, no meio de responsabilidades infinitas, sem auxílio nem socorro, sem outro objetivo além do que der a si próprio, sem outro destino além daquele que forjar para si mesmo aqui na terra” (Jean-Paul Sartre)
Aquiles, Teseu, Odisseu, Jasão, Orfeu, Conan, Hércoles e outros tantos são heróis mais ou menos conhecidos da antiguidade; ficção ou mitologia, cada um deles traz em si qualidades humanas e sobre-humanas no que se refere as batalhas e desafios existenciais.
De forma resumida, pode-se dizer que a partir de 1930, com a Revolução Industrial, principalmente o ocidente perde as nuances do romantismo, do renascentismo, que traziam em sua proposta artística e estética, uma existência cunhada em uma cultura ainda poética e mitológica, mesmo que a maioria não percebesse tal fato. A música clássica, o teatro, a poesia em si e a própria literatura, falavam e moldavam até então um indivíduo e uma sociedade mais esperançosa, e que validava aspectos existenciais míticos e poéticos.
Explico: os sonhos e ideais não eram integramente e invariavelmente aqueles de se tornar milionário e esteticamente perfeito ou perfeita; sonhava-se e buscava-se um amor verdadeiro, hoje buscamos um relacionamento que valha a pena; sonhava-se ser regente de uma orquestra; hoje busca-se ganhar bem…
Exceções à parte
Logicamente que ainda encontramos fragmentos psicológicos, culturais e comportamentais da era passada em nossa interessante, vibrante e caótica contemporaneidade. Ou seja, há pessoas conectadas e fiéis (e que podem) à sua própria essência no que se refere a fazerem aquilo que gostam em termos de profissão e também se relacionarem tendo como norte compatibilidades e valores, que se correspondem e que com isso não se mantêm por puro e empobrecido interesse material.
Exceções à parte, a contemporaneidade oferece um lugar psicológico imenso o qual se pode experimentar e viver uma angustia nova. A partir de 2010, já não experimentamos mais uma mudança, mas sim uma mutação…
Aceleração do áudio
Vamos às mutações: WhatsApp e a função de aceleração do áudio; dezenas de plataformas de streamings; compras e entregas quase instantâneas pela internet; inteligência artificial; apps que artificializam rostos e corpos em fotos nas redes sociais…
Vamos lembrar e citar apenas duas realidades psicológicas incontestes da contemporaneidade: depressões e ansiedade em escalas jamais datadas.
Quero dizer, com isso, que passamos a ser consumidores de angústias; nos alimentamos delas, pois os elementos contemporâneos citados acima, não são apenas causas de angustias; suas estruturas, suas velocidades, suas artificialidades são em si mesmas angustias, das quais nos alimentamos vorazmente de domingo a domingo.
Escolhemos por longo tempo qual filme ver e em quais dos streamings que assinamos, e muitas vezes, por fim, não vemos nenhum, ou apenas o começo; começamos vários livros sem aprofundar nada, e rapidamente voltamos a rolar infinitamente o feed no Insta ou Face sem perceber o banquete de angústia à nossa frente, que nos alimenta momentaneamente, mas não nutre, pelo contrário, nos esvazia e nos faz famintos constantes sem que nos apercebamos disso.
Hinos à fogueira
O heroísmo contemporâneo não exige mais irmos literalmente para o campo de batalha; nem irmos entoando hinos à fogueira; tão pouco não nos exige conquistar terras ou reinos. Pelo menos na maior parte do Ocidente – e até do Oriente – não é assim, guardadas as conhecidas e até várias exceções.
O heroísmo contemporâneo exige sobretudo um movimento de diferenciação perante esse imã massivo que dita comportamentos ou as ditas “vibes” do momento; esse heroísmo, que ainda se vê pouco, é aquele de novamente pensar nos ideais que nos fazem sentido; ideais grandes ou pequenos, isso não importa.
Esse heroísmo também confere reconhecer uma avassaladora solidão em meio à milhões, solidão essa que paira na sociedade de então; é o heroísmo de forjar diariamente o próprio espírito, de modo que em meio ao caótico que se apresenta no contemporâneo se possa conseguir ser inventor, inventora de uma vida que faça sentido.
Cavar masmorras
Dentro de uma ética, lembremos de Sartre mais uma vez: enquanto houver vida, estamos condenados a escolher o que nos apraz, e, se não escolhemos, escolheremos não escolher, e isso sim é grave. Dito isso, também enquanto houver vida, podemos ser e irmos para onde quisermos.
Ser herói ou heroína na contemporaneidade é cavar masmorras ao fenômeno de identificação de massa e erguer a torre da singularidade, ouvindo a voz interna, sábia e certeira, que sempre de alguma forma ou de outra, está nos chamando a atenção para aquilo que é nosso, mesmo que não faça sentido pra quase ninguém.
Essa é a solidão preconizada por Sartre: de bancar sermos quem somos, e mesmo sem aprovação dentro de uma ética de respeito e justiça, seguirmos firmes, até o último suspiro.
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