WILSON DE OLIVEIRA NETO: A COMPARAÇÃO INCÔMODA DE LULA

A HISTORICIDADE DAS COISAS SÃO BENTO DO SUL

Se tanta gente já falou um monte de coisas sobre Israel e suas guerras contra civis, por que a frase dita pelo presidente está dando o que falar?

Por Wilson de Oliveira Neto, historiador

Por que a comparação entre a Shoah e a morte de milhares de palestinos em Gaza, feita pelo presidente Lula, durante uma entrevista concedida na reunião de cúpula da União Africana, em Adis Abeba, deu origem a uma crise diplomática entre Brasil e Israel e aguçou a oposição política a ele?

Desde outubro do ano passado, a Faixa de Gaza é o alvo de uma série de operações militares das Forças de Defesa de Israel (IDF), em resposta à ofensiva do Hamas contra civis israelenses, que resultou na morte de 1.200 pessoas, além da captura de 240 reféns.

Estima-se que já morreram mais de 28 mil palestinos em Gaza. Mais um conflito que se soma ao histórico de guerras na Palestina, cujas origens estão situadas no final da década de 1940.

Vítimas de vítimas
Dando o que falar –
De lá para cá, foram inúmeras as declarações públicas de acadêmicos, artistas, intelectuais, religiosos e demais personalidades internacionais que denunciaram ou reprovaram a violência com a qual Israel lida, principalmente, com a população palestina sob seu domínio.

“Sim, os israelenses têm o direito de se defender. Sim, os judeus sofreram muito na Europa. Mas, como Edward costumava dizer, os palestinos são vítimas de vítimas. Precisamos ao menos reconhecer isso”, afirmou Miriam Said, viúva do acadêmico e crítico literário Edward Said (1935 – 2003).

Se tanta gente já falou um monte de coisas sobre Israel e suas guerras contra civis palestinos e países árabes vizinhos, por que a frase dita pelo presidente Lula, “O que está acontecendo na Faixa de Gaza não existe em nenhum outro momento histórico, aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus”, está dando o que falar?

Direita brasileira
Alvoroço –
Não tenho a pretensão de julgar se o presidente foi feliz ou infeliz na sua comparação, mas de refletir publicamente os motivos para tanto alvoroço, especialmente, nas redes sociais.

Na minha óptica, as reações ao que Lula disse podem ser compreendidas por meio de: a) As formas com as quais a memória e a história da Shoah são representadas e apropriadas publicamente; b) A “adoção” de Israel pela direita brasileira contemporânea.

Em 1945, os judeus eram uma das vítimas dos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. O grande problema do pós-guerra foi uma crise de refugiados, pessoas deslocadas dos seus países de origem que mobilizaram os esforços materiais e políticos dos aliados após o fim da guerra na Europa. Inicialmente, o genocídio judeu não chamou muita atenção pública.

“O conceito de ‘Holocausto’ não existia nos países Aliados nos anos 1940”, revela o historiador Ben Shephard. Nos Estados Unidos, por exemplo, os sobreviventes do Holocausto foram marginalizados na própria comunidade judaico-americana.

Mudança radical
Conceito –
A partir da década de 1960, entretanto, a maneira com a qual a história da Segunda Guerra Mundial era narrada na Europa ocidental e nos EUA sofreu uma mudança radical. Foi nesse contexto que surgiu o conceito de Holocausto.

O que fomentou esse fato foi o julgamento de Adolf Eichmann, em Jerusalém, durante o qual o extermínio dos judeus europeus pelos alemães e seus aliados foi exposto nos mínimos detalhes.

Nos Estados Unidos, a opinião pública ficou chocada com as revelações feitas durante o julgamento e com o fato de muitos criminosos de guerra emigrarem para o país legal e notoriamente. A partir daí, houve o início de uma pressão pública para a busca e julgamento de criminosos na América e na Europa.

Paralelamente, com os avanços dos trabalhos acadêmicos sobre a Shoah, o genocídio de 6 milhões de judeus europeus se tornou um recorte temático independente dos estudos históricos sobre a Segunda Guerra Mundial, obteve dimensões interdisciplinares, midiáticas e transnacionais.

O Holocausto se tornou um local de memória global, conforme é possível constatar em autores contemporâneos tais como Andreas Huyssen e Susan Suleiman. Nesse contexto, citar o Holocausto ou usá-lo como meio de comparação com outros eventos dramáticos se tornou delicado e politicamente engajado.

“Questão palestina”
Movimentos sociais –
No Brasil, a “questão palestina” e os conflitos entre árabes e israelenses são temas históricos dos movimentos sociais e partidos políticos de esquerda, a exemplo do Partido dos Trabalhadores, do qual o presidente Lula é um dos fundadores.

As guerras travadas na Palestina desde 1948 e a ocupação por Israel dos territórios que deveriam abrigar o Estado palestino, conforme o Plano de Partilha da Palestina (1947), são denunciadas e combatidas politicamente pela esquerda brasileira com base na luta anticolonial ou anti-imperialista, além de argumentos humanitários.

Fenômeno novo
Sionismo cristão
– Observa-se, nos últimos anos, a emergência de uma “nova” direita no cenário político brasileiro. Liberal na economia, mas conservadora nos costumes, a direita contemporânea possui grande inserção no neopentecostalismo, que interpreta a existência de Israel a partir de uma chave conceitual bíblica, sendo a fundação desse país, em 1948, o anúncio da segunda vinda do Messias ao mundo. Essa visão foi assimilada pelas forças políticas de direita, dando origem ao chamado sionismo cristão.

Trata-se de um fenômeno novo, pois o conservadorismo político brasileiro, historicamente, teve um pé no antissemitismo. Por meio de Israel, a direita brasileira encontrou um país para chamar de seu.

Se a esquerda tem os palestinos, a direita tem os israelenses. E, tal como os grupos políticos de esquerda, essa “nova” direita usará e abusará das mídias digitais na defesa de suas causas. A comparação feita pelo presidente Lula deu motivo para isso.

Enquanto isso, a Faixa de Gaza continua em guerra, com ou sem comparações.

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