Cazuza era caótico e tinha sua própria órbita
Por Guillerme Slominsky

o mano era meio avariado, um poeta da zona sul e um gênio. cazuza ficou conhecido dentro do grupinho de amigos como “cruz”, porque ele era a cruz que todo mundo carregava pelos rolês. não como um peso, mas como uma pessoa descolada do cotidiano, o mano era caótico e tinha sua própria órbita.
e hoje vamos tentar sintonizar um pouco nessa trajetória própria com “o tempo não para”, de 1988, que quase não aconteceu porque ele mesmo ainda tinha dúvidas sobre esse som. e começa assim:
“disparo contra o sol; sou forte, sou por acaso
minha metralhadora cheia de mágoas;
eu sou um cara cansado de correr; na direção contrária
sem pódio de chegada ou beijo de namorada
eu sou mais um cara”
eu lírico
nuance – se antes o cara era o suco da personalidade exagerada e autenticamente autocentrado, com essa música o olhar do eu lírico se distancia do “eu”, admitindo que é “mais um cara”, e começa a falar “deles” e de “nós” com uma sensível e bem executada nuance entre revolta e dor.
no ano de 1987 ele descobriu que era portador do vírus da Aids, que no mesmo ano estava sendo isolado pela primeira vez na américa latina e ainda era cercado de muito preconceito e desinformação. falava-se que a síndrome seria uma “justa retribuição” aos “homens que se deram ao luxo de manter relações sexuais com homens” em discursos da subcomissão da família do menor e do idoso, na época.
“mas se você achar; que eu tô derrotado
saiba que ainda estão rolando os dados
porque o tempo, o tempo não para…
dias sim, dias não; eu vou sobrevivendo sem um arranhão
da caridade de quem me detesta”
medicamentos
crítica social – boletins epidemiológicos apontam uma redução significativa das mortes e novas infecções por HIV nos últimos anos no brasil, tanto pela modernização no tratamento quanto pela disseminação do uso da PrEP, que é uma combinação de dois medicamentos que bloqueiam a infecção do vírus no organismo já antes da possível exposição.
e é aí que vem a dura crítica social do cazuza, sabendo que o HIV já vinha naquela época sendo cercado de estigma e discriminação, que são obstáculos para a prevenção, ele usa a sua “metralhadora de mágoas” apontada pra cara da hipocrisia em um refrão fenomenal:
“a tua piscina tá cheia de ratos;
tuas ideias não correspondem aos fatos
o tempo não para
eu vejo o futuro repetir o passado;
eu vejo um museu de grandes novidades
o tempo não para; não para, não para!”
velhas estratégias
certas comunidades – mesmo doente, cazuza resistia com toda a disposição escancarada na letra; é um golpe cru que atordoa ao revelar que, em uma sociedade tão preocupada em condenar o diverso e vulnerável, o abismo entre as elites e a realidade deixa de ser uma consequência para se tornar ferramenta do próprio sistema.
e essa ideia, apesar de tão atual, reverberava desde 1990, no nosso “museu de grandes novidades” as obras em exibição são as velhas estratégias de apagamento, ataque e vulnerabilização de certas comunidades que não pedem nada além do direito de existir. e com esse grito acalorado podemos lembrar que a luta não é de hoje, mas precisa continuar acontecendo enquanto for necessário.
“nas noites de frio é melhor nem nascer;
nas de calor, se escolhe: é matar ou morrer
e assim nos tornamos brasileiros
te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro;
transformam o país inteiro num puteiro
pois é assim que se ganha mais dinheiro”.
tapa de luva
pasmos – e assim ficamos com esse belíssimo tapa de luva nas caras dos pasmos, deixando consigo a maior mensagem de cazuza: os dados ainda estão rolando! não para, não!
obrigado e até a próxima,
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