Wilson de Oliveira Neto: QUEM SÃO OS XOCLENGUES?

A HISTORICIDADE DAS COISAS SÃO BENTO DO SUL

ESTÁ MAIS QUE NA HORA DE TAMBÉM NOS ENXERGARMOS NA HISTÓRIA DOS XOCLENGUES, TÃO TRISTE QUANTO A HISTÓRIA DAS ENCHENTES DE BLUMENAU

Por Wilson de Oliveira Neto, historiador

É comum associarmos Santa Catarina às colonizações europeias das épocas colonial e imperial da história brasileira. Quanto mais ao norte do País, mais forte são as representações acerca de uma “Europa brasileira”, que é muito bem explorada pelo próprio marketing turístico catarinense.

No entanto, como em outros lugares do Brasil, populações tradicionais e originárias também compõem a cultura e a história catarinenses. Volta e meia, o presente e o passado de comunidades quilombolas e indígenas em Santa Catarina ganham visibilidade midiática.

Infelizmente, na maioria das vezes, a partir de situações trágicas, como o confronto entre a PMSC e os índios xoclengues da reserva de José Boiteux, município próximo da cidade de Blumenau, ocorrido na manhã de domingo, 8 de outubro.

Comportas

Barragem – Em virtude das chuvas que atingem Santa Catarina desde a semana passada, no sábado, dia 7, o governo do estado decidiu fechar as comportas da barragem de José Boiteux, pois Blumenau estava sob o risco de sofrer uma enchente violenta.

Fundado em 1850, o município de Blumenau é, historicamente, assolado por enchentes, sendo muito presente na sua memória social as trágicas inundações da década de 1980, que ganharam, na época, visibilidade nacional e que serviram de pano de fundo para o nascimento da Oktoberfest.

Índios

Perdas – Por outro lado, a comunidade xoclengue residente na reserva em José Boiteux foi contra o fechamento das comportas da barragem que foi construída em suas terras e que só causou danos para seus habitantes.

A obra foi entregue pelo governo federal em 1992 e, segundo os xoclengues, quando a reserva é atingida por chuvas fortes, ocorrem alagamentos, em que plantações são perdidas e famílias ficam ilhadas. Em mais de trinta anos, foram relatadas perdas materiais e humanas com mortes decorrentes das inundações.

As comportas foram fechadas na tarde de domingo, após choques entre efetivos da PMSC e xoclengues. Mas, quem são esses índios? O que está por trás desse conflito?

“Gente do sol”

Ciências Sociais – Na classificação de origem europeia dos povos indígenas do território brasileiro, os xoclengues fazem parte da família linguística Jê. Contudo, sua autodenominação é Laklaño, que pode ser traduzida para o português como “gente do sol” ou “gente ligeira”. Não é feio falar xoclengue, pois os próprios laklaño usam essa nomenclatura quando necessitam expressar uma identidade coletiva mobilizada para suas lutas políticas e sociais.

De acordo com as Ciências Sociais, os xoclengues surgiram a partir de indígenas que se separaram dos caingangues, sendo inicialmente caçadores e coletores. Seus ancestrais possuíam uma espacialidade diferente da nossa, sendo difícil situá-los geograficamente em um período anterior ao contato com o Serviço de Proteção ao Índio, no começo da década de 1910. De uma forma geral, os caingangues, por exemplo, circularam um por um espaço geográfico que foi de São Paulo ao Rio Grande do Sul.

Xamanismo

Sagrado – Até o contato com populações euro-descendentes, os xoclengues possuíam um sagrado baseado na ideia de que o mundo natural e seus seres eram possuídos por um conjunto variado de espíritos. Narravam as origens do mundo e dos homens por meio de uma cosmologia própria.

Não existe na língua xoclengue uma palavra específica para religião, tal como na sua raiz latina. Entretanto, do ponto de vista das Ciências da Religião, as práticas e as representações dos xoclengues acerca do sagrado podem ser consideradas uma forma de xamanismo.

A história dos xoclengues sofreu uma mudança radical a partir da segunda metade do século XIX, com o avanço da colonização europeia pelo interior de Santa Catarina. Considerados um obstáculo, foram localizados e atacados, principalmente, por bugreiros que assassinaram aldeias inteiras pelo uso de armas brancas e de fogo.

Não se sabe a quantidade exata de indígenas mortos pelas mãos de gente como Martinho Bugreiro, considerado o mais violento “matador de índios” em Santa Catarina. O extermínio dos xoclengues pode ser considerado uma forma de genocídio praticada no território catarinense.

Serviço de proteção

“Pacificados” – Mesmo com a intervenção do Serviço de Proteção ao Índio, no começo da década de 1910, a situação deles não melhorou. Na verdade, piorou. “Pacificados”, eles se tornaram vítimas da espoliação de suas terras ancestrais, da desqualificação do seu patrimônio cultural e da pobreza. No contexto acadêmico, os xoclengues são estudados há bastante tempo, com destaque para os trabalhos do antropólogo catarinense Silvio Coelho do Santos.

Como também acontece com os demais povos indígenas brasileiros, parte da opinião pública nutre uma simpatia infantil pelos xoclengues, vistos como os “bons selvagens” do século XXI, cujo patrimônio cultural seria uma alternativa aos malefícios da sociedade euro-descente em que vivemos.

Por outro lado, os xoclengues são rotulados como “bugres” indolentes que estão a sabotar a barragem de José Boiteux e que mereceram a repressão imposta pela PMSC.

Extremos

Situação de calamidade – Extremos que ignoram um fato essencial: os xoclengues são tão brasileiros quanto nós e que têm direito à segurança em uma situação de calamidade pública, como os habitantes de Blumenau.

Nos vemos na triste história das enchentes de Blumenau. Está mais que na hora de também nos enxergarmos na história dos xoclengues, tão triste quanto.

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